‘Há grande chance de um colapso nacional. A população precisa acordar para a dimensão da nossa tragédia’, diz Miguel Nicolelis: Efeitos ‘sincronizadores’, como o carnaval, fizeram com que a alta de contágio abalasse todas as regiões, num efeito dominó, diz especialista
Constança Tatsch
Colapso Nacional
Desde dezembro, o médico, neurocientista e professor catedrático da Universidade de Duke (EUA) Miguel Nicolelis vê o colapso se aproximar no horizonte da pandemia. Alertou autoridades e orientou as medidas a serem tomadas, em especial um necessário lockdown. Na semana passada, deixou a coordenação do Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a Covid-19.
O agravamento da pandemia da Covid-19 vem levando os sistemas hospitalares de diversos estados ao colapso, de Norte a Sul do país.
No dia em que o país registrou o pior número de mortos em 24 horas de toda a pandemia (foram 1.582 óbitos registrados em apenas um dia, com recorde também na média móvel de mortes, que ficou em 1.150), Nicolelis conversou com O GLOBO e defendeu a necessidade de um lockdown nacional por 21 (vinte e um) dias.
Só isso, diz, pode evitar o colapso simultâneo da saúde (e depois funerário) em praticamente todo o país: “A população precisa acordar para a dimensão da nossa tragédia”.
Novo Coronavírus! A população precisa acordar para a dimensão da nossa tragédia
Adotar o lockdown
[bs-quote quote=”A população precisa acordar para a dimensão da nossa tragédia” style=”style-7″ align=”left” author_name=”Miguel Nicolelis” author_job=”neurocientista e professor catedrático da Universidade de Duke (EUA)” author_avatar=”https://www.abctudo.com.br/wp-content/uploads/2021/02/neurocientista-miguel-nicolelis.jpg”][/bs-quote]
O senhor deixou o Comitê Científico do Nordeste. A principal razão apontada pela imprensa foi a relutância dos governos em adotar o lockdown. É isso?
Saí porque fiz o que tinha que fazer, criei estrutura, implementei procedimentos, elaboramos todas as recomendações possíveis da ciência, e agora está tudo lá na mesa dos gestores. Avisamos em 18 de dezembro que a situação ia ficar crítica. Tudo o que foi pedido foi realizado, e o resultado foi melhor do que eu esperava, mas a gente quando é cientista sabe que chega a hora que fez o que podia fazer. Minha missão foi cumprida, deixei minha vida de lado para achar as melhores formas de combater a pandemia no Brasil.
O senhor disse que São Paulo é a próxima peça no dominó a cair.
Como avalia as situações dos estados brasileiros?
Santa Catarina anunciou que colapsou, o Rio Grande do Sul está dramático, o triângulo mineiro colapsou. Belo Horizonte teve dois lockdowns que provocaram queda importante nas internações e mortes, mas o sul do estado, não. Sabe aquele jogo de dominó em quem uma peça cai depois da outra? Foi a metáfora que usei.
- Santa Catarina anunciou que colapsou, o
- Rio Grande do Sul está dramático,
- o triângulo mineiro colapsou.
- Belo Horizonte teve dois lockdowns
Existem preocupações na região Norte, Rondônia já foi, Mato Grosso, o próprio Distrito Federal, São Paulo tem menos de três semanas de reservas de leitos de UTI — o que, para a cidade que é a capital de medicina brasileira, é assustador.
Ultrapassamos o recorde de internações. No Estado do Rio, a letalidade é recorde no Brasil. O Nordeste ficou com o menor índice de óbitos por 100 mil nos primeiros 11 meses, mesmo assim o crescimento ainda é o menor, numa região com menos médicos do que a média nacional, menos infraestrutura. Esperava-se que o colapso ficasse restrito à região Norte. É surpreendente que o Sudeste tenha se saído tão mal.
Ou seja, o colapso está ocorrendo de Norte a Sul.
Como chegamos a essa situação?
Diferentemente da primeira onda, quando foi cada estado num tempo, surgiram efeitos sincronizadores como eleição, festas de fim de ano, carnaval. Agora, tudo está explodindo ao mesmo tempo. Isso significa que não não tem medicação, não tem como intubar, não vai dar para transferir de uma cidade para outra, não vai ter como transferir para lugar nenhum.
A consequência do colapso de saúde é o colapso funerário. Cientistas não olham só o presente, mas olham o futuro, enquanto o político está pensando no hoje, em como resistir à pressão do setor X para não fechar, a despeito das mortes.
Como vê esse futuro?
Eu estou vendo a grande chance de um colapso nacional. Não é que todo canto vá colapsar, mas boa parte das capitais pode colapsar ao mesmo tempo, nunca estivemos perto disso. Se eliminar o genocídio indígena e a escravidão, é a maior tragédia do Brasil. A ausência de comando do governo federal é danosa. Isso é uma guerra. Em outros países essa é a mensagem que foi dada, veja a China.
É curioso ver que no mundo ocidental exista dificuldade de transmitir essa mensagem da gravidade. Em Israel, metade da população foi vacinada no meio de um lockdown, e Israel é um país que entende o que é uma guerra. Adotaram discurso de salvação nacional, a mobilização foi total.
Além da falta de gestão, a população também deixou de se mobilizar?
Eu tenho me perguntado muito: qual é o valor da vida no Brasil?
Que valor os políticos dão para a vida do cidadão se não fecham as atividades num lugar com 100% de ocupação dos leitos? Ter que preservar a economia é não só uma falsidade econômica como demonstra completa falta de empatia com a vida das pessoas. O que mais me assusta é o pouco valor à vida.
Os políticos são o primeiro componente, mas a sociedade também. Porque, quando alguém vai a uma festa clandestina de fim de ano, de carnaval, se aglomera numa balada ou à beira do campo de futebol, não compromete só sua saúde, mas a vida dos seus familiares, seus vizinhos e das pessoas que nem conhece. Nossa sociedade em algum momento perdeu a conexão com o quão irreparável é a vida.
O pessoal fala que daqui a um ano vai estar tudo certo, em 2022 vai ter carnaval. Do jeito que a carruagem está andando, a perda de vidas pode chegar ao dobro daqui a um ano. E tudo isso num país que tem um sistema de saúde conhecido no mundo, capitalizado, que tem tradição de campanhas de vacinação. Ninguém esperava que o Brasil fosse ter uma performance tão baixa. Poderíamos estar vacinando 10 milhões, mais do que qualquer país. É como uma tragédia grega, mas é brasileira, que alguém vai contar um dia. Porque ela é épica, como a derrota dos troianos.
O lockdown é a resposta?
O Brasil precisaria de um lockdown nacional, com uma campanha de comunicação, porque a gente precisa da colaboração da população. A população precisa acordar para a dimensão da nossa tragédia. Nessa altura, essas medidas de restrição de horário não têm efeito, porque o grau de espalhamento é tão enorme que se compensa durante o dia, quando as pessoas vão aos restaurantes, shoppings, pegam transporte lotado, não funciona.
A consequência da perda de meio milhão de pessoas não dá nem para imaginar. Sem gente não tem economia, ninguém produz, ninguém consome.
- Economia,
- Ninguém produz,
- Ninguém consome
É inconcebível.
É possível impedir essa catástrofe?
Tem saída, mas tem que mudar tudo. Ainda dá tempo de reverter. Estou propondo a criação de uma comissão de salvação nacional, sem Ministério da Saúde, organizado pelos governadores, para resolver a logística. É uma guerra, quando vamos bater de frente com o inimigo de verdade? O Brasil é o maior laboratório a céu aberto para ver o que acontece com o vírus correndo solto. Em segundo lugar, um lockdown imediato, nacional, de 21 dias, com barreiras sanitárias nas estradas, aeroportos fechados.
E depois ampliar a cobertura, usando múltiplas vacinas. Não dá para ficar discutindo, assina o contrato e vai em frente, deixa para depois, estamos falando da vida de 1.500 pessoas por dia, são 5 boeings caindo. Vacinação, vacinação, vacinação, testagem e isolamento social. Não tem jeitinho numa guerra. Estamos diante de um prejuízo épico, incalculável, bíblico.
Quem é o Médico Miguel Nicolelis
- Nascimento: 7 de março de 1961 (idade 59 anos), São Paulo, São Paulo
- Pais: Giselda Laporta Nicolelis
- Filhos: Rafael Nicholas
- Formação: Universidade de São Paulo, Colégio Bandeirantes
- Prêmios: National Institutes of Health Director’s Pioneer Award, Prêmio Neuroplasticidade
Miguel Angelo Laporta Nicolelis (São Paulo, 7 de março de 1961) é um médico e cientista brasileiro, considerado um dos vinte maiores cientistas em sua área no começo da década passada pela revista de divulgação para leigos Scientific American. Foi considerado pela Revista Época um dos 100 brasileiros mais influentes do ano de 2009.[4] Nicolelis foi o primeiro cientista a receber no mesmo ano dois prêmios dos Institutos Nacionais de Saúde estadunidenses e o primeiro brasileiro a ter um artigo publicado na capa da revista Science.
Lidera um grupo de pesquisadores da área de Neurociência na Universidade Duke (Durham, Estados Unidos), no campo de fisiologia de órgãos e sistemas.
Seu objetivo é integrar o cérebro humano com máquinas (neuropróteses ou interfaces cérebro-máquina). Suas pesquisas desenvolvem próteses neurais para a reabilitação de pacientes que sofrem de paralisia corporal. Nicolelis e sua equipe foram responsáveis pela descoberta de um sistema que possibilita a criação de braços robóticos controlados por meio de sinais cerebrais.
Este trabalho teve recepção controversa pelos meios acadêmicos e científicos; ele é considerado pela revista: MIT Technology Review como um dos fracassos tecnológicos de 2014.
Já The Verge, rede norte-americana de notícias on line, referência em ciência, tecnologia, arte e cultura, premiada cinco vezes pela International Academy of Digital Arts and Sciences, o descreve como um dos destaques científicos de 2014, sendo Miguel Nicolelis retratado como uma das 50 personalidades mundiais do ano.
Mais Informações sobre o Coronavírus na Internet
- Novo Coronavírus: Tudo O Que Você Precisa Saber – Permanente
- Duke University (USA)
- Universidade Duke é uma universidade privada para ambos os sexos, localizada em Durham, no estado da Carolina do Norte, nos Estados Unidos da América. Embora fundada em 1924, a Duke tem suas raízes em 1838. É uma das universidades mais prestigiosas no mundo, sendo classificada pelo site americano US.
ATENÇÃO
Conteúdo informativo, não substitui médico
Este conteúdo possui caráter informativo e não substitui o diagnóstico feito em consulta médica.
Em caso de dúvidas ou aparecimento de sintomas mencionados neste artigo procure um profissional de saúde qualificado para obter um diagnóstico preciso.
Lembre-se a automedicação pode ocasionar graves complicações.
OPINIÃO
ABCTudo Paulista
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interação de fatos e dados.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do ABCTudo/IT9.
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